Trabalho num supermercado como tantos outros — prateleiras para repor, etiquetas para trocar, horários que nunca batem certo. Mas há dias em que algo inesperado acontece… e fica gravado na memória.
O Miguel trabalha na logística. Sempre calmo, discreto, mas com aquele olhar atento que parece ver mais do que devia. A nossa relação era normal, quase banal. Até aquele dia.
Eu estava no pequeno armazém dos fundos a arrumar umas caixas, quando encontrei um pacote meio rasgado com máscaras de Carnaval que tinham sobrado. Achei piada. Peguei numa máscara preta, simples, com um toque misterioso, e não resisti a colocá-la no rosto. Fiquei a olhar-me no espelho improvisado da porta metálica — era como se eu fosse outra pessoa, alguém mais ousada.
Quando me virei… lá estava ele. Miguel. Encostado à porta, a observar-me com um leve sorriso nos lábios.
— Não sabia que tinhas um lado teatral — disse ele, com aquele tom que me desarma.
Senti um arrepio, mas mantive a pose.
— Todos temos um lado que não mostramos no horário de trabalho — respondi, a fingir uma segurança que nem eu sabia de onde vinha.
Ele aproximou-se devagar. O som dos frigoríficos ao longe parecia pertencer a outro mundo. Ficámos frente a frente, num silêncio que dizia mais do que qualquer palavra.
— E que outros lados escondes tu, Sofia? — perguntou ele, com uma voz quase sussurrada.
Olhei-o sem desviar os olhos. Aquilo não era só curiosidade. Era desejo camuflado de conversa casual. Era vontade travestida de brincadeira.
Tirei a máscara, devagar, e respondi com um sorriso:
— Talvez um dia descubras.
E saí dali com o coração acelerado, sem olhar para trás. Mas até hoje, cada vez que passo por ele nos corredores… pergunto-me se ele ainda pensa nisso. Porque eu penso.
hmm