Conheci a Clara num fim de tarde qualquer, daqueles em que a rotina nos consome e tudo parece igual. Eu estava na biblioteca da faculdade a fingir que estudava, como tantas outras vezes. Precisava de um livro técnico, mas andava à deriva pelas prateleiras, meio perdida entre o cansaço e a vontade de estar noutro lugar.
Foi então que a vi.
Sentada num canto quase escondido, Clara folheava um livro de arte com uma calma que contrastava com o rebuliço do mundo. Tinha os fones nos ouvidos, o cabelo preso de forma despreocupada e uns olhos castanhos que saltaram à vista assim que ela olhou para cima. Havia algo nela que me prendeu — talvez fosse a serenidade, talvez o facto de parecer tão à vontade na sua própria solidão.
Passei por ela algumas vezes nos dias seguintes. Sempre com livros diferentes, mas no mesmo lugar. A certa altura, deixei de fingir que não reparava.
Na sexta-feira seguinte, munida de uma coragem que não sei de onde veio, aproximei-me.
— Esse é dos meus favoritos — disse eu, a apontar para a capa do livro que ela lia.
Ela tirou os fones devagar, como se me estivesse a ouvir mesmo antes disso. Sorriu, com um brilho tímido mas honesto.
— Tens bom gosto. Queres sentar?
Sentei-me. E ficámos ali, a conversar como se já nos conhecêssemos de outra vida. Falámos de arte, da vida académica, da sensação de não nos encaixarmos exatamente nos moldes que nos são dados. Clara contou-me que estudava Belas-Artes, que pintava sempre de madrugada porque “as ideias só chegam quando o mundo está em silêncio”.
A partir desse dia, passei a frequentar a biblioteca com outros olhos. Não era mais pelos livros. Era por ela. Por aquele espaço partilhado, por aquelas conversas sussurradas entre mesas de estudo e pelo roçar de dedos ao partilhar uma caneta.
O tempo foi passando e, com ele, o silêncio entre nós começou a mudar. Já não era desconfortável — era denso, íntimo, como uma linguagem própria.
Numa tarde particularmente cinzenta, em que o céu parecia querer adormecer connosco, Clara fechou o livro que lia, olhou-me nos olhos e disse:
— Às vezes acho que te encontrei sem querer, mas que estavas ali à espera.
Não respondi. Apenas sorri. E, num gesto quase instintivo, ela encostou a testa à minha. Os nossos narizes tocaram-se de leve. Ficámos assim, imóveis, a partilhar aquele momento como se o tempo nos tivesse dado uma trégua.
Não houve beijos nem promessas. Apenas a certeza de que, entre tantos livros e silêncios, tínhamos começado a escrever uma história só nossa.
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